13
Nuvem rubra, nuvem negra
A área de Tormenta zumbia e ribombava, atrás. Na manhã, uma mancha vermelha e podre, ameaçando com terror. Mas Arton ameaçava de volta. Porque as tropas entravam em formação, as trombetas soavam, os estandartes eram erguidos. Os corações aceleravam, as mãos agarravam forte o cabo das armas. Os soldados trocavam bravatas, juramentos e desafios. Porque chegava a batalha.
A área de Tormenta atrás, estourando. Mas, à frente, Bielefeld e o Exército do Reinado, sob o estandarte do Corvo, liderados por Orion Drake. A coluna da União Púrpura, quarenta e cinco mil degenerados, chiando obscenidades. E o poderio de Yuden, massa de disciplina e força, o Exército com uma Nação espremendo Crânio Negro.
Marcha. Marcha.
Formações de batalha. Tambores e ordens.
Trovão.
A Tormenta na mácula rubra, e uma tempestade a se formar nas nuvens acima. Lutariam na chuva, lutariam na lama. Mas lutariam.
Montado no soberbo cavalo branco, Orion dava as últimas instruções. Os contingentes de cavalaria já se haviam postado nos flancos, liderados por Alenn Toren Greenfeld e por Xavier Nash. Sir Pelvas, o Cão que Cavalga, participaria da carga, junto dos namalkahnianos. Ingram Brassbones, coberto de manto escuro e armas, já tinha suas missões. Darien sumira, perdido, mais um na parede de escudos.
Vanessa se aproximou de Orion.
— Você vai cavalgar? — disse ela.
O cavaleiro apeou.
— Na verdade, tenho um pedido a lhe fazer.
A clériga deu um sorriso incerto.
— Lady Vanessa Drake — disse Orion, abaixando-se sobre um joelho e tomando a mão da esposa. — Poderia me dar a honra de combater ao meu lado na parede de escudos?
Ela riu, puxou-o.
— Há quanto tempo não lutamos assim, juntos?
— Anos e anos.
— Anos demais.
Beijaram-se.
Orion deu um tapa carinhoso no flanco de Bandido. Lutaria a pé, lutaria com sua amada.
— Vallen? — disse Vanessa.
— Vai ficar bem guardado. Está na tenda de comando, com um destacamento de cavaleiros da Luz, e dois clérigos.
— Vamos vê-lo antes da batalha.
— É claro.
Deram-se as mãos.
— Você está realmente gostando disso, não é? — falou Orion.
— Guerra resolve tudo.

A área de Tormenta se agitava. Como uma coisa viva, parecia se retorcer de ansiedade pelo combate próximo.
As tropas estavam em linha. A parede de escudos estava formada. No centro, o general Orion Drake, ao seu lado Vanessa. Ouviu uma balbúrdia atrás, empurrões, falta de disciplina.
— Deixem-me passar!
E três soldados desapareceram para a segunda fileira, dando espaço a Bernard Branalon, o Paquiderme Galante.
— Esses rapazotes mal sabem limpar o traseiro, Orion. Não convém deixá-los ao seu lado na parede de escudos.
— Vamos combater os três então, meu amigo. Juntos!
— Agradeça a Khalmyr por isso.
E projetou sua risada volumosa.
Estavam os três, Vanessa, Orion e Bernard, no centro da parede. Escudos sobrepondo-se, subindo e descendo no uníssono da respiração, ouvindo as trombetas, ouvindo os tambores. Logo atrás, o estandarte do Corvo.
A União Púrpura começou a marchar.
— Magos! — gritou Orion. Sua voz foi carregada aos céus, por magia, e por cornetas e arautos.
Nas linhas traseiras, o batalhão de magos de combate entrou em uma cacofonia arcana. Os mesmos encantos, muitas vezes, ou outros muito parecidos. Moviam as mãos em gestos idênticos ou semelhantes, faziam coro ou sobrepunham diferentes trechos das palavras mágicas. Junto com os magos, um druida, encontrado ao acaso entre os mercenários, e um punhado de clérigos alinhados com a natureza. Trovão — a Tormenta agitava-se atrás.
Arton respondeu.
A União Púrpura avançava, lenta e inexorável, e logo desprenderam-se os voadores. Coisas insetóides, pingando gosma e veneno e sangue e pus, bárbaros corrompidos, distorcidos, carregados aos ares por asas duras e estriadas. Tinham armas (arcos e flechas, azagaias, lanças) e tinham seu horror (cusparadas ácidas, pedaços afiados de si mesmos). Sibilavam, enegrecendo os ares de zumbido, mas Arton trovejou.
Os magos eram, quase sem exceção, homens de estudo e método, mas entusiasmavam-se. No final das entoações, erguiam as vozes, e as nuvens de tempestade se adensaram (cinza sadio em vez de rubro doente), e os ventos tomaram o céu. Os voadores foram derrubados, um teto de furacão cobria o campo de batalha. A manhã enegreceu, mas era um escuro bem-vindo. Os primeiros pingos de chuva, horizontais por causa do vento, tocaram os soldados, e eles gritaram de júbilo. Crânio Negro ordenou que seus servos alados pousassem.
E continuou a marchar.
O avanço largo, que tomava a planície em todas as dimensões, ameaçava engolir o Exército do Reinado, agora a poucas dezenas de metros. Crânio Negro preocupava-se com Yuden, atrás, mas tentava avançar a todo custo, sacrificar quem fosse preciso, para atravessar ali, e penetrar na área de Tormenta.
O passo dos bárbaros aumentava, ganhando impulso —
— gritou Orion.
gritaram as trombetas, gritaram os oficiais.
Pelos flancos do Exército, a cavalaria investiu.
As duas cargas de cavalaria, em cada um dos lados do exército, eram uma provocação agressiva, um desafio bravo ao inimigo — porque eram pinças. Os bárbaros de Crânio Negro tinham pinças, tinham quelíceras repugnantes, mas o Exército do Reinado tinha as pinças feitas de lanças e cavalos, e homens fortes. A carga furou os lados da União Púrpura, espremendo suas linhas e quebrando a formação, tornando a investida principal mais estreita, para a parede de escudos de Orion.
À ordem do general, que na verdade era seu comandado, Alenn Toren Greenfeld sorriu e urrou. Fera negra em armadura dourada, a lança de guerra pronta em riste, na vanguarda da cunha dos cavaleiros da Luz, ele repetiu:
— Carga!
E a Ordem da Luz cavalgou.
Centenas de lanças, centenas de cavalos fortes, protegidos de armaduras, e homens cobertos de metal e tradição. Mesmo aqueles que haviam sido covardes, mesmo aqueles que haviam, um dia, procurado ouro e nome, e nada mais, foram invadidos pelo sentimento daquela luta, porque a Ordem derramava-se sobre eles. A carga encontrou os inimigos corruptos, a força monstruosa dos corcéis empurrando as lanças, rompendo carapaça, furando carne apodrecida.
Alenn Toren montava um cavalo negro, e foi o primeiro a matar um inimigo. As criaturas chiavam. Ele pôs seu olho único em um enorme bárbaro coberto de navalhas escarlates, com vinte olhinhos amarelos e quatro patas insetóides. O homem carregava um machado vivo, que possuía uma boca eternamente salivante e fazia barulhos de fome.
No instante da carga, o bárbaro procurou saltar, evadir a lança do Alto Comandante. Mas era impossível. A lança era comprida demais, o cavalo era rápido demais. A carga era treinada há anos, há décadas, e montaria e cavaleiro sabiam exatamente como fazer daquele o ataque mais devastador. No meio do salto, o bárbaro foi colhido pela ponta da arma de Alenn Toren. Sua carapaça foi perfurada, a lança entusiasmou-se ao penetrar a carne macia, e venceu a resistência da casca do outro lado, trespassando o inimigo. O bárbaro soltou um guincho, e golpeou com seu machado.
— Vocês eram a União Púrpura! — rugiu Alenn Toren. — Como ousam se rebaixar assim?
E urrou de novo, um som primitivo e ancestral que assustou seus próprios aliados. O Alto Comandante largou sua lança, derrubando o bárbaro no chão. Sacou uma enorme espada, e golpeou para baixo, na cabeça do inimigo, enquanto seu cavalo pisoteava-o. Cérebro e sujeira vermelha esguicharam para todos os lados. Alenn Toren puxou sua arma de volta, livrando-a do cadáver, e investiu de novo — espada e lança em punho.
— Pela Ordem da Luz! Pela União Púrpura!
Os bárbaros voavam e eram despedaçados, em contato com o ataque devastador. Um inimigo dotado de cauda de escorpião e duas cabeças de gafanhoto mordeu o pescoço de um cavalo, esquivando-se da lança de seu cavaleiro e fazendo o animal tombar. Deliciou-se no sangue que jorrava, e agarrou a cabeça do cavaleiro caído. Golpeou com o ferrão venenoso, enquanto uma de suas cabeças vasculhava os perigos próximos. Foi colhido na onda seguinte, os dois pescoços dilacerados por uma lança.
No outro flanco, Namalkah.
Xavier Nash não tinha um grito glorioso. Era um tropeiro e, se sabia lutar, era porque a vida o ensinara. Junto dele, os homens e os cavalos de Namalkah. Os melhores cavalos de todos, e aqueles que gostavam de se gabar de serem os melhores homens. Cavaleiros da Luz, e cavalarianos do Exército do Reinado, acompanhavam os ginetes. Sob as ordens de um velho que tinha por profissão levar tropas de bois.
— É matar, minha gente! — gritou Xavier Nash.
Um relincho estrondoso se ouviu, o general dos cavalos dando a ordem, e explodiram em carga.
Os bárbaros rosnavam, berravam, moviam as antenas e faziam barulho com as serrilhas de pernas e braços. Os cavalos de Namalkah levaram os ginetes numa investida de relâmpago. As lanças toscas, de ferro negro, traindo suas origens de facas ou tesouras, penetraram nas carapaças. Os cavalos eram mais fortes que os monstros. Uma linha de bárbaros cuspiu imundície vermelha sobre os ginetes, mas os cavalos, sem comando, pularam no instante exato, e deixaram o solo chiar sob o muco cáustico. Os namalkahnianos deixavam o corpo se mover, cada um em harmonia meticulosa com seu corcel, e apenas encaixavam o golpe. O galope provinha a força, e a primeira leva de bárbaros morreu.
Xavier Nash deixou-se quedar atrás, escolhendo seu alvo com sua calma milenar, em meio ao caos. O cigarrão de palha pendia-lhe no canto da boca, preso a um beiço, até que ele enxergou uma vítima convidativa. Um homem com quase três metros de altura, grosso como um tronco, manzorras do tamanho da cabeça de um boi, centenas de dentes afiados e vermelhos. O tropeiro investiu, cuspindo o cigarro e ajeitando a lança por cima do ombro. O monstro notou-o, urrou, correu para receber o ataque e matar antes. Xavier Nash, sereno, arremessou a lança, perfurando o peito do inimigo. Um impacto de marreta, mas de pouco efeito. Continuavam na carreira para se encontrar, mas o velho puxou uma outra lança, com uma rapidez fluida e calma, e fez a carga com mira estóica e precisa, no mesmo ferimento aberto pelo primeiro golpe. O buraco no peito do homem se alargou, ele cambaleou vomitando sangue negro. O cavalo de Xavier Nash fez o resto. Saltou, metendo os dois cascos dianteiros nas clavículas do inimigo, quebrando osso vermelho e pútrido.
— Eia!
Pulava sobre ele um segundo bárbaro, uma figura de um ridículo medonho, com uma imensa cabeça de mosca sobre ombros estreitos e cheios de lâminas. Em vez de mãos, tinha espadas. Ridículo, mas letal. E saltava, guinchando, enquanto Xavier Nash preparava um outro cigarro.
O bárbaro foi colhido no ar por um relâmpago. Caiu no chão, blasfemando e fumegando, e virou-se. E encontrou uma lança, um ginete em carga. O Doutor Zebediah Nash investiu contra o inimigo, atravessando-lhe o pescoço fino com a lança comprida, continuando na carga, empurrando a arma enquanto o inimigo se debatia, até que a cabeçorra se desprendeu.
— Tio, esta não é a hora mais apropriada para fazer um cigarro.
O velho deu uma fungada.
— Ora, eu sabia que o senhor viria me ajudar.
Um tropel ao lado, a segunda investida de um grupo de ginetes.
— Hippion! Hippion!
Zebediah Nash puxou sua lança de volta, girou o cavalo.
— Hippion não existe. — Galope. — Namalkah!
Sir Pelvas lutava junto a um grupo de cavaleiros da Luz. Brandia sua enorme espada de esgrima, cortando os inimigos em longos talhos rasos, derramando sangue e dividindo gargantas. Puxou uma lança ornamentada, que parecia ter lugar em uma justa, e investiu contra um grupo de inimigos. Leve, rápido, quase não tinha força, comparado aos outros, mas encaixou a ponta da lança em um olho esbugalhado e insetóide, espirrando muco e mutilando o inimigo. E, em meio à carga, uivava.
Os lados da coluna da União Púrpura desabavam. Era questão de tempo, por simples força de números, até que a carga de cavalaria parasse de surtir efeito. Mas, naquele momento, os bárbaros recuavam, empurravam-se uns aos outros aos milhares, frente ao tropel que fazia tremer o chão. E, empurrando-se, espremiam as próprias linhas, e forçavam a vanguarda mais para frente.
Orion, no centro da parede de escudos, aguardava de dentes rilhados.
Crânio Negro gritava ordens, de cima de sua montaria feita de cadáveres. Através da liderança de Artorius, transformara aqueles bárbaros em soldados disciplinados — mais que disciplinados, soldados sem mente. Mas, naquele instante, frente à investida, dentro de cada bárbaro começou uma luta. O simbionte gritava tudo que era lefeu, a obediência e a meticulosidade. Mas, com uma fagulha de medo, emergia o que era selvagem. E eles eram empurrados, quebravam-se as linhas, e o instinto começava a se espalhar.
E logo, a União Púrpura se desfez em uma poderosa e selvagem carga a pé.
— Não! — gritava Crânio Negro. — Em formação! Em formação!
Orion arregalou os olhos, descrente. Melhor do que qualquer coisa que ele pudesse esperar. Porque a carga iria se desfazer como ondas na pedra, contra a parede de escudos.
Os bárbaros corriam, brandindo espadas, machados, tentáculos, garras, ferrões.
— Firmes! — gritou Orion. — Por Arton!
O ar se encheu de zumbido e guinchos — os gritos de guerra da União Púrpura.
Trovão.
Orion ergueu mais seu escudo, protegendo Vanessa. Viu o escudo à sua frente — Bernard Branalon — erguer-se também. Sentiu o chão sob as grevas, os pingos de chuva martelando a armadura de placas. O pé escorregando um centímetro, na lama, e logo firmado. A mão agarrando forte o cabo da espada. Guincho, e o cheiro. Um cheiro ácido, nojento, mistura de enxofre e fruta estragada.
Impacto.
Os bárbaros se chocaram contra o Exército do Reinado.
Orion quase recuou ante a colisão. Meteu a cabeça para cima, enxergou uma nesga do inimigo. Era um homem cheio de cicatrizes e tatuagens, e sua carapaça se mesclava a elas, em padrões abstratos. Tinha dentes afiados no lugar dos cílios, e dois tentáculos finos e cheios de pêlos cresciam-lhe na cabeça, como antenas. Usava um machado de duas lâminas. O homem bateu no escudo de Bernard, que protegia Orion, e o cavaleiro sentiu o tremer do golpe. Orion meteu a espada por baixo do escudo do amigo, em uma estocada curta, que procurou um joelho mas não encontrou. O machado do bárbaro atacou de novo o escudo, num clangor que se misturava com o som da chuva. Orion se esticou, estocou com a espada por cima do escudo, girando o ombro. Seu golpe encontrou o pescoço do inimigo, abriu uma rachadura na carapaça. Ele voltou ao esconderijo, a tempo de evitar um golpe, entrando no ritmo treinado da luta. Erguido de novo, estocou no mesmo lugar. A espada encontrou a rachadura aberta, fez um buraco fundo no pescoço do homem, que chiou de dor. Um jato de sangue espirrou para o lado, emitindo um fedor de podridão. Orion abaixou-se, enfiou a espada pela minúscula fresta entre os escudos, abaixo, e fez um corte para trás, abrindo um talho na virilha do inimigo. O bárbaro guinchou e caiu, ainda se debatendo. Foi pisoteado pelo próximo que vinha em carga, para se encontrar com a linha do Reinado.
Era um homem musculoso mas baixo, todo o corpo pulsando com um rubor em ondas. Coberto de todo pela carapaça, com centenas de minúsculos espinhos pontiagudos. Antes que chegasse, Orion esticou o braço, estocando com a espada, e a ponta da arma encontrou o rosto do inimigo. A carapaça se quebrou acima do nariz, e o impacto o fez escorregar, caindo de costas. Orion avançou, pisou forte no pescoço do bárbaro, ouviu casca e osso partirem, voltou à formação.
Enquanto vinha a carga inimiga, Vanessa gritou:
— Keenn, forme a parede de espadas!
E os bárbaros corriam, quando uma centena de lâminas espectrais barraram seu caminho. Guincharam de horror e agonia, e foram retalhados pela magia de Vanessa. Mas emergiram do outro lado, sangrando, alquebrados, mas vivos e raivosos. O primeiro que encontrou Vanessa saltou com pernas de grilo, vindo encontrar o escudo de Orion, que a protegia. Clangor, mas a proteção resistiu. Vanessa deu meio passo atrás, sem sair da formação, e o inimigo saltou de novo. Ela esperou que ele surgisse por cima da borda do escudo, e deu um golpe lateral com a enorme maça de guerra. O lado do estômago do bárbaro foi atingido com toda força, a carapaça se rachando e os órgãos sendo esmagados. Logo veio outro, com mãos em forma de bocas, tentando meter braços de seis cotovelos pelas brechas por entre os escudos. Vanessa moveu-se para o lado, deixou um dos braços ficar visível, e golpeou. A maça estraçalhou o braço do inimigo, deixando-o pendente. Mas, previsível, veio o ataque pelo outro lado. Vanessa se esquivou de novo, e quebrou-lhe o outro braço. Em seguida, abaixou-se sob a proteção do escudo. O bárbaro estava fora de combate, mas ainda ali, e foi esmagado por seus companheiros, quando veio a próxima leva.
Um bárbaro atacava Vanessa com a arma mais comum — machado. Ela se arriscava, esticava o braço inteiro para obter força com a maça, a força que quebrava as carapaças e os ossos. A cabeça do bárbaro se rompeu como um ovo, sob a maça de guerra, e seus olhos voaram livres para o chão.
Bernard Branalon usava uma lança, uma das mais eficazes armas na parede de escudos. Mas não uma lança de infantaria, como usavam milhares de homens. Era uma lança de justa, que um homem comum só conseguia empunhar sobre um cavalo. Bernard precisava de apenas uma mão. Os bárbaros vinham em sua direção e ele brandia a lança, com seu comprimento prodigioso, espetando-os muito antes que pudessem atacá-lo. E puxava a arma de volta. Ela ficava presa, sugada pela carne, entre as costelas dos inimigos, e apenas um repuxão de força incrível conseguia soltá-la. Os homens atrás de Bernard eram obrigados a se afastar, para não serem golpeados por seu cotovelo metido em placas.
Um bárbaro foi trespassado, mas recusava-se a morrer. Pelo contrário, agarrou a arma enfiada em seu peito, e começou a puxar Bernard para fora da parede. O Paquiderme Galante fixava os pés no barro, puxava de volta. Mas o bárbaro tinha a força do simbionte, e seus pés possuíam garras longas e articuladas, que furavam o chão e davam mais firmeza. Bernard era arrastado.
— Vou ajudá-lo! — disse Orion.
— Está tudo sob controle, rapaz.
O Paquiderme Galante deixou-se ser puxado. Saiu da formação, sob a chuva, deslizando no barro. E já era cercado de bárbaros. Agarrou a lança de justa, ainda enfiada no peito do inimigo, com as duas mãos. Urrou de esforço, e ergueu a ponta, suspendendo o bárbaro corrompido no ar. E, com mais um grito e um estirão, jogou a ponta da lança para trás, arremessando o homem para dentro da linha do Reinado, onde ele foi estocado uma dezena de vezes pelos soldados ansiosos.
— Dêem-me espaço, garotos! — disse Bernard, voltando à parede de escudos.
E vinham mais bárbaros, berrando e zumbindo, agitando asas inúteis ou cuspindo veneno. Aqui e ali, um escudo era corroído de ácido, ou um guerreiro recebia um jorro de espinhos na cara. O grosso dos soldados sofria nas patas dos simbiontes. Caíam, agonizando, mas logo eram substituídos por companheiros, que matavam com vontade redobrada.
A pressão dos milhares atrás empurrava Orion e Vanessa e os outros, comprimindo seus corpos, fazendo um calor abafado, cortado pelos pingos de chuva que escorriam para dentro das armaduras.
E o estandarte do Corvo pendia orgulhoso, encharcado.
— Khalmyr! — gritou Bernard Branalon.
E os homens responderam:
— Khalmyr! Drake! Drake!
E, apesar de si mesmo, Orion teve um arrepio ao ouvir seu nome berrado em júbilo por milhares de soldados, inspirando-os na guerra.
— Arton! — gritou o general.
Um novo inimigo veio encontrá-lo. Era um homem avassalador, com ombros grandes como pedras de catapulta, e duas quelíceras finas e afiadas, em constante movimento. Olhinhos negros espreitavam no fundo de seu crânio, enterrados por debaixo de uma testa proeminente e blindada. Chifres pontiagudos e serrilhados emergiam de suas têmporas, e nem todas as placas de sua couraça eram suficientes para cobrir-lhe os músculos encaroçados. Não usava armas.
Agarrou o escudo de Orion e puxou-o. O cavaleiro veio junto, deixando Vanessa desprotegida. Orion foi jogado na lama, com força monstruosa, rolou aproveitando o impulso e logo pôs-se de pé. O bárbaro foi até ele, suas garras enormes como martelos afiados, golpeando intermitentes. Orion dobrou os joelhos, firmou-se para os golpes, dardejou com o escudo à direita e à esquerda, interceptando as mãos do inimigo. O bárbaro agarrou de novo as bordas do escudo de Orion, ergueu o cavaleiro acima da cabeça. O peso do homem, com armadura completa, armas e escudo, não lhe era nada. Um instante antes de ser jogado, Orion chutou. A ponta de sua bota de metal encontrou o nariz. Era protegido de couraça, mas podia ser quebrado. E, se podia ser quebrado, podia doer. Osso e casca fizeram barulho, e o inimigo uivou de dor. Jogou Orion, que aterrissou de costas e sentiu algo se partindo dentro de si. Uma tontura de ferimento, e o peito queimando de costelas soltas. O bárbaro avançava. Orion, num meio giro, ficou de joelhos. Bloqueou o ataque com o escudo erguido, avançou meio metro, deslizando no barro, enquanto o impulso carregava o inimigo um passo a mais. Orion deu um corte fundo com a espada, girando o corpo para trás, cortando tendões. O bárbaro caiu com as pernas moles, e Orion se pôs de pé num salto. Bateu com o escudo três vezes no topo da cabeça do homem, até quebrar-lhe a carapaça, e então enfiou a espada no cérebro esponjoso.
O general estava fora da parede de escudos. Olhou ao redor, e só havia inimigos. Trovão! — Arton rugia. E, de novo, trovão! — a Tormenta urrava.
E, de repente, o ar, o céu, o mundo se encheu de uma palavra. Mais que uma palavra, uma idéia, um sentimento de repugnância, medo, adoração, estranheza e amor. Mais que idéia, todos os sentidos sendo preenchidos por uma sensação; cada homem, dentre as dezenas de milhares que se enfrentavam sob a chuva, ouviu, enxergou, cheirou, tocou, saboreou:
Gatzvalith.
A impressão do Lorde da Tormenta era escarlate, alienígena e repugnante. Era também horrivelmente tentadora. Quando Orion emergiu daquele momento de esplendor terrível, esperou ver o Lorde ali, destruindo seu exército, mas só restava uma lembrança. A batalha prosseguia. O que significava aquilo?
Ao redor, os inimigos. Os bárbaros chiavam para ele, cercavam-no. A linha do Reinado tentava avançar, para protegê-lo, mas a disciplina era mantida — a vida do general não valia a quebra da formação. Orion ergueu espada e escudo, quando um tropel rompeu pelas fileiras.
Crânio Negro cavalgava seu corcel macabro, furando linhas de seu próprio exército, para longe da batalha.
Orion urrou e correu para ele.
O cavaleiro bateu com seu escudo, cortou selvagem à frente, para evitar os inimigos, querendo apenas o caçador de recompensas.
— Crânio Negro! — trovejou.
A armadura negra fez virar o corcel de cadáveres.
— O que você quer? — disse Crânio Negro. — Minha luta não é com você. Não sei nada sobre você. Seus homens estão morrendo por nada. Por que me ataca?
Orion rosnou.
— Porque você existe.
De cima do cavalo infernal, o caçador sacou as duas espadas. Orion ignorou os inimigos ao lado, atrás, e correu para encontrar aquela armadura, aquele criminoso. Podia sentir o cheiro da maldade ao seu redor. Crânio Negro enfiou esporas nos flancos apodrecidos da montaria, e investiu com as duas espadas erguidas.
— Minha luta não é com você.
— A minha é com você.
Orion saltou, dizendo às costelas partidas para se calarem. Dizendo a si mesmo para não morrer pelos golpes do oceano de inimigos à volta. Crânio Negro ergueu as espadas em uma prontidão graciosa, bailarina. O caçador não tinha grito de guerra. Mas Orion gritou:
— Vanessa! Vallen!
Porque, no final, era o que importava.
Crânio Negro deixou os braços penderem, como se já fosse golpeado. Levou as manoplas à cabeça de elmo. Balançou o rosto, para um lado e para outro. Recebeu o golpe real, do escudo de Orion, no meio do salto, e depois de sua espada. Não notou se estava ferido. Porque só conseguia ouvir uma palavra, um nome, repetindo, retumbando.
Orion tinha os olhos arregalados, surpreso do próprio sucesso.
Crânio Negro começou a se agitar na sela de carapaça insetóide, dar berros intermitentes, balançando o elmo. Virou a montaria e saiu a galope, como se fugisse.
Os bárbaros cercaram Orion.
E um casco esmagou uma cabeça, abrindo espaço. Bandido estacou frente ao cavaleiro, pronto para a batalha.
— Devo-lhe a vida pela segunda vez — disse Orion.
O cavalo relinchou.
E os bárbaros atacaram. Mas Orion não lhes deu atenção, atropelou-os sobre Bandido, em perseguição a Crânio Negro.
O caçador rumava para a área de Tormenta.

Ingram corria, como um esquivo pedregulho, no meio das linhas do inimigo. Suas pernas atarracadas davam-lhe uma agilidade estranha, como um porco-espinho enlouquecido, e ele tilintava com todo o metal das armas. Pela borda da capa escura, o longo cano do rifle se projetava. Ingram saltava, dardejava, de cabeça baixa, coberta pelo capuz, evitando os golpes de centenas de inimigos.
Era um jogo arriscado, e ele sabia que não sobreviveria cinco minutos sob a barragem de morte. Sua missão era rápida: entrar, destruir, ir embora.
Ao longe, muito longe, ele ouvia o rugido da linha de frente. Imaginava que tipo de sucesso Orion estava tendo, divisava fiapos da carga de cavalaria. Mais perto, a linha de Yuden, encontrando a retaguarda da União Púrpura com suas fileiras encouraçadas, como imensas tartarugas bélicas. Tudo isso longe. Ele estava sozinho. Outras pessoas só atrapalhavam.
Espadanando lama, Ingram jogou-se para o lado, evitando um jorro de ácido vermelho. Abaixou-se, salvando-se de um golpe de machado, e correu por entre as pernas (meio patas) de outro grupo. Por todo lado, a cacofonia de zumbidos, chiados, guinchos. Súbito, foi agarrado por uma manzorra afiada, os dedos como pequenas pinças. Forçou-se no caminho, foi puxado, ouviu a capa rasgar.
— Filho de uma centopéia!
Virou-se, sacou uma pistola, viu o bárbaro: um homem magro e comprido, com as mãos desproporcionais, maiores que a cabeça. Uma fileira de antenas pontiagudas adornando-lhe o crânio. Ingram fez mira e fez fogo, estilhaçando a testa do inimigo e espalhando um fedor nauseabundo. Praguejou. Uma bala desperdiçada, um momento desperdiçado. E a capa rasgada era grave: o tecido oleado iria lhe proteger a pólvora, e um rasgão podia ser a morte.
Livrando-se do bárbaro, deu um salto, correu, recuperando o tempo perdido, e enfim avistou seu objetivo.
As bizarras máquinas de guerra da União Púrpura, catapultas vivas, formadas por insetos e homens, com cordas que eram imensos tendões, e sempre gemendo de alegria e dor. Sua munição também era viva: soldados corrompidos distorcidos em bolotas de carne, prontos para serem jogados nas duas linhas de batalha. Outro engenho pavoroso era uma máquina estranha, movida por rodas feitas de corpos, com um imenso canhão gotejante. Era um tubo ósseo, e pingava ácido vermelho e fedorento. Iria dissolver as linhas de Yuden. E, ladeando tudo, os terríveis gigantes, feitos de corpos ainda vivos, grudados uns aos outros por carapaça escarlate. As coisas viraram-se para ele, os bárbaros cercando-o —
Pela segunda vez, uma impressão alienígena, divina, monstruosa, maior que o universo, tomou conta de todos os exércitos. A palavra, a sensação, a idéia do Lorde da Tormenta Aharadak varreu as dezenas de milhares. Era um pensamento — uma certeza — de puro horror abjeto, uma maldade tão grande que nada era possível exceto curvar-se. E uma vontade quase irresistível de um forte sentimento eclesiástico. Antes, a idéia de Gatzvalith tocara os sentidos. Agora, a idéia de Aharadak tocava a alma.
Ingram piscou, e mais uma vez nada mudara. O Lorde da Tormenta não estava lá, restava apenas a inquietação de uma vaga presença poderosa. Não importava; destruir era o importante.
— O que esses yudenianos sem mãe estão esperando?
Como em resposta, vieram os tiros de catapultas. Ingram traçara o plano, combinara com o exército de Yuden, produzira as armas, em pressa terrível. Uma enorme esfera de couro caiu entre as linhas da União Púrpura, no meio das máquinas de guerra. Estourou com o impacto, espalhando seu conteúdo — óleo negro e pegajoso — a dezenas de metros.
Ingram sorriu.
Veio outra, e outra. O anão corria, se esquivava, volteando sempre a região atacada, enquanto as enormes bolas de óleo negro estouravam sobre as monstruosidades. Após o décimo disparo, Ingram sacou sua arma.
Um frasco de cerâmica. Um invento simples, alquimia básica.
Arremessou-o, a coisa se quebrou, derramando o conteúdo inflamável. Alquimia básica — prendia fogo em contato com o ar.
O fogo alquímico explodiu em uma chama minúscula, e tocou o óleo negro que cobria tudo.
Um vagalhão imenso de fogo selvagem se espalhou em um instante. O óleo negro incendiava à menor fagulha, grudava-se em carne, osso e na carapaça insetóide. O incêndio espalhou-se pelas linhas dos bárbaros. Os gigantes coletivos berravam com dezenas de vozes em agonia. As catapultas gritavam sua dor. O canhão de ácido rubro começou a vomitar para todos os lados, em descontrole, matando os bárbaros.
— Queimem! — gargalhava Ingram. — Vocês vão fumegar, desgraçados!
E nada era mais fácil que alimentar um incêndio. Ingram arremessava novos frascos de fogo alquímico, e recipientes cerâmicos de pura pólvora, dando entusiasmo às chamas. O pandemônio dilacerava as linhas.
Ingram sacou suas pistolas e pôs-se a cortar, a tiros, seu caminho de volta.

Darien estava sozinho.
Cercado de gente, homens e monstros, aliados e inimigos. Mas não eram na verdade aliados, e os inimigos não eram seus. A batalha rugia, ele segurava a espada sem força, e tentava erguer o escudo que não sabia usar direito. O fedor de suor impregnava o homem à sua esquerda, mesmo através da chuva, e o calor dos corpos juntos contrastava agudo com o gelado dos pingos. Seu próprio peito queimava, e as gotas frias escorriam por dentro da roupa até seu estômago, fazendo calafrios.
A batalha estava a poucos metros, as linhas da União Púrpura chocando-se com o centro da parede de escudos. Mas ele estava parado, assim como uma dúzia ou arredores de soldados perto dele, nos flancos. Darien achara que seria o primeiro a morrer, sem proteção, na parte mais vulnerável da parede de escudos, mas vivia absurdamente, sem poder fazer nada, olhando o caos e quase não fazendo parte.
— Khalmyr! — gritou o homem ao seu lado, sem razão alguma. Darien imaginou por que ele dissera aquilo.
Um bárbaro rolou no chão de lama, empurrado da luta, um braço pendente. Levantou-se, chiando por entre a boca cheia de tentáculos, e ameaçou com sua lança. Darien pensou no que deveria fazer, erguer o escudo, golpear com a espada, olhando sem compreensão para o inimigo. O homem à sua esquerda deu uma estocada, atingiu o bárbaro no rosto. Ele cambaleou, e outro soldado perfurou-o com um golpe de lança.
Darien esquecia-se de estar lá.
Do meio das fileiras da União Púrpura, começou a se desprender um nó de guerreiros.
Soaram as trombetas do Exército do Reinado. Em poucos dias de treinamento, aqueles homens tinham levado as ordens à alma. Segundo o comando das trombetas, deram um passo atrás, ofegando, gratos pelo descanso, e foram ordenadamente substituídos por novos soldados, descansados, em uma parede de escudos intacta. Darien lentamente começou a recuar, mas foi empurrado de volta para frente.
— Você fica aí até morrer, traidor — disse um homem que ele não conhecia.
Darien olhou para seu novo companheiro, à esquerda, e protegeu-o com o escudo. O grupo que emergira dos inimigos agora se revelava, em um tropel lamacento. Eram cavaleiros.
Cobertos de casca de inseto, portando armas farpadas e serrilhadas, e um estandarte feito de pele humana, onde estava desenhado o símbolo de Khalmyr. Vinham para o flanco, na direção deles.
— Preparem-se! — gritou algum comandante. Os homens gritaram palavras de honra, o nome de sir Orion Drake.
Os cavaleiros corrompidos abaixaram suas longas lanças, apontadas para eles, e investiram.
— Não se esqueça de morrer, traidor — disse o homem à esquerda de Darien.
Dor.
Darien olhou para o lado, e viu uma sutil adaga na mão do soldado que ele protegia. O homem puxou a faca, guardou-a e agarrou a espada. Darien sentiu-se tonto, viu o sangue escorrendo, sendo lavado pela chuva, os cavaleiros em carga, gritando:
— Sangue e juventude!
E então, o mundo ficou vermelho.
A terceira presença fez-se sentir nos exércitos. Um conceito avassalador, uma idéia, uma sensação sufocante. Um pensamento que dominou cada mente, de ambos os lados da batalha.
O terceiro Lorde da Tormenta. Trazia uma certeza de insignificância. Que cada um daqueles homens, não importando seus feitos, não importando seus títulos ou sua força, era nada. Podiam ser destruídos com uma respiração, não importando quantos milhares fossem. Igasehra chegou-lhes à mente como um desespero, como a impressão de puro destruir, sem sentido e sem propósito, a certeza de que nada restaria, nem alma nem memória.
E, em um instante, a idéia se desfez.
Darien balançou a cabeça, mas aquilo não era muito mais estranho que a parede de escudos, que a batalha ao redor, que a facada que recebera. Que os cavaleiros corrompidos, em galope na sua direção, gritando:
— Sangue e juventude!
As lanças corruptas encontraram a parede de escudos. Darien viu o homem à sua esquerda ser perfurado, a arma trespassando sem dificuldade o escudo que ele mesmo segurava, passando a um centímetro de seu antebraço. Foi jogado para trás, contra os homens calorentos, suados. Deixou o escudo na lama e se ergueu. Via a carga cortar em fiapos o batalhão onde ele combatia, os jovens de armaduras passando, um atrás do outro, numa repetição mortífera, ceifando dezenas com suas lanças serrilhadas.
Darien lembrou-se que deveria combatê-los. Ergueu a espada, desceu-a sobre um cavaleiro em galope. A arma resvalou inofensiva, o movimento arrancou-a de sua mão. Por toda a volta, carnificina. Mas ninguém tocava-o. Os homens berravam, golpeavam em frenesi, saltavam para fora do caminho da carga ou uniam-se em massas compactas, sacrificando-se para retardar um dos cavaleiros. Darien segurava o ferimento em seu estômago. Respingado de lama e sangue, que a chuva lavava.
Um cavaleiro estacou bem à sua frente.
Tinha tentáculos, e uma aparência terrível e vermelha, coberta de navalhas. Mas, ao mesmo tempo, era majestoso. Alto, costas eretas, os longos espinhos que projetavam-se de suas costas como adornos. Usava uma longa capa de pele humana, que se derramava pelas ancas de seu garboso corcel insetóide. Seu elmo se contraiu, revelando o rosto branco e os cachos louros.
— Eu conheço você — disse Vincent. — Darien, não é?

— Mantenham a formação! — gritou Vanessa.
Sua garganta em carne viva, de tantas ordens, repetia os comandos mais uma vez. O escudo de Bernard Branalon protegia-a agora, e ela defendia um soldado recente, chegado com a nova leva, após o soar das trombetas. Vanessa e Bernard tinham contrariado as ordens — seguiam na frente da parede de escudos, os braços amortecidos, já além da dor, matando e matando sem descanso.
Mais uma onda de inimigos se chocou contra a formação. Vanessa se abaixou, protegendo-se contra um imenso golpe de alabarda, e bateu no inimigo sem vê-lo, com a maça de guerra. O som da carapaça se partindo, o fedor da gosma interna, já não era mais registrado, misturava-se com as dezenas de repetições daquilo tudo, no tédio frenético que era a batalha. Vanessa, lavada em suor, os cabelos ruivos grudando-se à pele, o tapa-olho escorregando para a bochecha, atacava sem pensar. Ocupava a mente com Orion e Vallen. Sentia o empurrão dos soldados atrás, as botas deslizando, os pés encharcados. Sentia o empurrão dos bárbaros à frente, impulsionados pelo ataque de Yuden, do outro lado do combate.
O estandarte do Corvo tombou, atrás dela. Vanessa gritou para que o erguessem, e um novo porta-estandarte avançou por sobre o cadáver do antigo, carregando o orgulho do exército. A bandeira encharcada pendia.
Uma nova carga dos inimigos trouxe mortos-vivos.
Os xamãs da União Púrpura animavam os seus mortos e os do Reinado, e seus números se renovavam.
— Clérigas! — berrou Vanessa.
O comando foi levado pelas trombetas. E, logo, as linhas do Exército do Reinado se abriram para dar passagem a um nó compacto e intocado de mulheres em dourado e verde. Clérigas de Lena, a Deusa da Vida. Juradas de nunca lutar ou causar dor, era também impossível lutar perto delas. Emanavam uma aura de calma que fazia os soldados dos dois lados se afastarem. E, como uma só, ergueram as mãos e invocaram a santidade, para expulsar os guerreiros mortos-vivos.
Eles fugiam das clérigas, de sua simples presença luminosa, provocando mais caos entre os bárbaros. Aqueles que não podiam correr acabavam sendo destruídos, virando pó num alívio final.
Vanessa sorriu. A Vida servia à Guerra.
Clamou pelo nome de Keenn e berrou uma prece. Uma luz amarela e fria surgiu por detrás das nuvens. Um som agudo, e a luz tornou-se uma imensa pedra brilhante, caindo sobre o inimigo. Como um cometa, explodiu no meio da União Púrpura, espalhando bárbaros para todos os lados.
E então, o vermelho.
Todos os combatentes perdiam a noção do tempo, quando eram assaltados, pela quarta vez, pela sensação avassaladora de um Lorde da Tormenta. Muitos vomitavam, outros passavam instantes em imobilidade completa — o que significava a morte. Dentre os defensores de Arton, alguns morriam por simples horror, ou então tornavam-se loucos, para não ter de encarar um mundo onde aquilo existisse. Dentre os bárbaros, alguns enchiam-se de fúria jubilosa, enquanto outros prostravam-se em adoração. Alguns simbiontes cresciam, dando ainda mais força a seus hospedeiros, e outros eram tão tomados de beatitude que saltavam do corpo artoniano, matando-o.
O vermelho daquela vez trazia uma idéia de união, de junção poderosa. Todas as dezenas de milhares perguntavam-se: como era possível existirem tantas criaturas separadas, diferentes? A palavra, a idéia, o conceito que lhes invadia era:
Raigheb.
O Lorde da Tormenta que era um enxame, que era tudo e era nada, de que todos podiam fazer parte, sacrificando somente a si mesmos. E todos quiseram, pelo menos um pouco, deixar de lado a dor do indivíduo e ser também Raigheb.
Acordando da vermelhidão, os soldados lutavam.
Yuden chocava-se contra a retaguarda da União Púrpura, esmagando os bárbaros por pura força de disciplina e números. Quarenta mil, trajados em armaduras, carregando escudos imensos que protegiam o corpo inteiro. Marchavam em passo único, perfeito, golpeando todos juntos como se fossem um só. O Exército com uma Nação atacava as tribos corrompidas, e suas manobras eram uma espécie de balé, coreografado à perfeição, já previsto, já conhecido — a luta em si era um mero espetáculo.
Muito atrás, protegido por batalhões de honra, o Rei Mitkov observava o combate em uma bola de cristal. Trajava sua melhor armadura, aço de cor dourada, imitando os músculos por trás. Sorria o seu sorriso lupino, considerando os movimentos distantes dos soldados e dando ordens rápidas.
Ordenou que lhe trouxessem vinho.
— Vinho? — lady Shivara explodiu. — Deveríamos estar lutando. Deveríamos estar bebendo o sangue deles.
Mitkov deu um riso de lado.
— O papel de um general não é lutar, minha esposa. É comandar.
— Os homens estão morrendo por nós.
— Você mesma não disse que esta batalha era por todos? Era por Arton? Se bem me lembro, essas foram as suas palavras. Os homens estão morrendo por si mesmos.
Shivara mordeu o lábio inferior. Repetiu a si mesma que havia feito a coisa certa.
Um pajem trouxe uma ânfora de vinho para Mitkov.
— Eu vou lutar — disse Shivara.
— Não.
— Eu vou lutar, Mitkov. Se quiser me impedir, então prenda-me. Vamos fazer um belo espetáculo. Toda a aclamação que você desejava ao casar comigo destruída, mandando-me prender durante nossa primeira batalha juntos.
Os olhos dos dois se encontraram.
— Certo — disse Mitkov, com um suspiro. — Vamos lutar.
Shivara ergueu uma sobrancelha.
— Não posso deixar que minha esposa lute sem que eu esteja ao lado — disse Mitkov. — Eu pareceria um covarde. Vamos lutar juntos.
Shivara apanhou seu elmo.
— Eu irei usar sua espada — disse o rei, limpando os lábios nas costas da mão.
— A lâmina é minha — rosnou Shivara. — É Carthalkan, a Espada Cristalina. Pertence à minha família.
— Nossa família.
Shivara engoliu.
— Será o símbolo de nossa união — disse Mitkov, pegando a espada sem constrangimento, e sopesando-a na mão. — O rei de Yuden usando a espada da rainha de Trebuck. O povo vai nos amar, querida.
Shivara olhou ao redor. Tomou uma outra espada.
— Agora beije-me.
Shivara beijou-o.

E, de novo, o vermelho.
Aquelas almas já estavam exaustas. A mente de todos os guerreiros não podia mais suportar o ataque daquelas presenças avassaladoras. A cada vez que o vermelho descia sobre os exércitos em luta, formava-se uma cicatriz em dezenas de milhares de espíritos. Sobrava um desespero, um pesadelo, um medo ou uma devoção a ser lembrada anos depois.
Mas houve uma nova onda de horror. Um sentimento de inquietude, a princípio, e depois a certeza de se estar sendo vigiado, examinado, estudado. A impressão de que tudo era vivo, e julgava. A idéia de que, dentro de cada homem, de cada coisa, podia existir um inferno, e de que nada era inocente ou inofensivo.
Urazyel.
O último dos Lordes da Tormenta derramou sua existência, e os trovões aumentaram. A intensidade da batalha aumentou. Os guerreiros mataram mais, com mais rapidez e crueldade. E o pior era a incerteza. Não havia provas da passagem daquelas idéias. Não havia a forma física dos Lordes, não havia uma imagem. Cada um, dentre todos os milhares, temia estar louco, sozinho, sentindo tudo aquilo sem que nada existisse.
O que significava?
Os Lordes eram reais. O que todos sentiam era a mais vaga brisa de seu poder. Porque, naquele momento, ocorria algo inédito.
Todos os Lordes da Tormenta se encontravam.

Darien piscou, como se acordasse.
Ao redor, a carnificina rugia, correndo em alegria selvagem, nas patas de cavalos corruptos e na marcha de soldados em desespero, causando apenas vento perto dele.
Vincent abaixava-se, para olhá-lo melhor.
— Darien?
O rapaz segurou o ferimento no estômago, engoliu um soluço. Disse a si mesmo que chorar por causa de um homem era coisa de menininhas e cavaleiros.
Mas havia reconhecimento nos olhos azuis. Vincent estava lá.
— O que aconteceu com você? — disse Darien.
Vincent franziu as sobrancelhas, mas depois desanuviou o rosto. Sorriu. Um sorriso oscilando entre o maroto e o digno. Encantador.
— Eu construí tudo de novo — disse Vincent. — O Bando do Dente Quebrado. Lembra?

Darien examinava o chão, em busca de uma arma.
— Lembra de como era? — disse Vincent. — Eu reconstruí tudo. É claro, esses não são bandoleiros. São cavaleiros da Luz. Mas também servem. São tão barulhentos e burros quanto aqueles outros.
— Vincent, o que aconteceu?
— É tudo como antes — divertiu-se o rapaz. — Matei aquele cavaleiro louco. O velhote, sir Justin, lembra? Matei-o. É tudo como antes.
Estendeu-lhe a mão.
— Só falta você.
Darien mergulhou ao chão, agarrou uma espada. Apontou-a para Vincent, em posição de defesa. Vincent seguiu com a mão estendida, o sorriso derretendo-se lentamente em confusão.
— O que está fazendo, Darien?
— Você enlouqueceu. Quis ser uma porcaria de um cavaleiro. Perdeu a memória. Agora, isto! O que é isto, Vincent?
— Pare de fazer perguntas chatas. Todas as dúvidas desaparecem com o simbionte.
— Diabo, nem sei se você é Vincent.
— Só falta você, Darien. Lembra? Nós dois no comando, porque os outros eram muito fracos e lentos e burros. Por enquanto, estou liderando sozinho. Mas seria melhor com você.
Darien tremia. A ponta da espada sacolejando frenética.
— Está liderando uma pocilga.
Vincent recolheu a mão, retesou a boca numa expressão séria.
— Por que você diz isso? — gritou. — Por que é sempre tão teimoso? Por que insiste em emboscar cavaleiros da Luz?
— Era por sua causa, seu imbecil! Você ia morrer, ou sei lá o quê!
— E você conseguiu me curar, Darien?
Os dois ficaram ofegando.
— O que você está fazendo aqui? — disse Vincent.
— Lutando.
— Por que não foge?
Pausa.
— Sou um escudeiro — fungou. — Era.
— Você quer ser cavaleiro, então?
— Chega!
— Nada do que existe serve para nós, Darien. Será que você é tão burro que não vê isso? Eu tentei ser cavaleiro da Luz, mas foi inútil. Assim como nós tentamos ser bandoleiros, e acabamos presos, com a morte de todos os outros nas costas. Como você está se saindo, como escudeiro?
Darien não respondeu.
— Isto é algo novo. Droga, quero que você seja líder, junto comigo. Eu fiz algo que serve para nós, Darien. Eu descobri algo que me A Ordem da Luz está aceitando você? O Exército do Reinado está aceitando você?
Darien começou a abaixar a espada.
— Que diabos, seu magricela idiota — disse Vincent, quase se rendendo a outro sorriso. — Vai me fazer falar como uma donzelinha. Você conseguiu amigos de verdade, aqui?
Darien tocou o ferimento.

Orion fez o cavalo branco parar, na borda da área de Tormenta.
— Aqui é o limite para você — disse.
Bandido pateou o chão, relinchando e bufando.
Orion fez menção de apear, mas o cavalo ergueu-se nas patas traseiras, impediu-o.
— Você pode morrer aqui.
Relincho.
— Por Khalmyr, criatura. Isto é uma área de Tormenta.
Bandido disparou em galope. Orion deu-lhe um tapa vigoroso, de amigo, no pescoço.
Caía a chuva ácida. Um fedor sufocante emergia do solo, do ar, da própria realidade. Sons estridentes e enervantes surgiam de fendas nas pedras. Árvores feitas de ossos, arame e crosta vermelha se contorciam. O pêlo do corcel queimava, em contato com a chuva. A armadura de Orion chiava, ele sentia o ácido penetrando-lhe a carne.
E galopavam.
As ferraduras começavam a se dissolver. Orion agarrou sua lança, forçando os olhos na vermelhidão, em busca de Crânio Negro. Formavam-se poças ácidas no solo, que logo viravam improváveis lagos de sujeira. Vermes farpados rastejavam, mãos esqueléticas agarravam o ar, brotando da terra. Relâmpagos cortavam o céu, destruindo indiscriminadamente, e o ar alternava-se entre calor abrasivo e frio pontiagudo.
Orion sentia-se naquele lugar. O ponto de encontro dos dois universos, onde a realidade era mais fraca, onde ele era menos ele mesmo.
Ao longe, divisou o alvo.
— Crânio Negro! — rugiu.
O caçador de recompensas voltou o elmo para ele, e fez o corcel cadavérico acelerar. Inclinava-se na sela, enfiava as esporas fundo, querendo só
— Crânio Negro!
Bandido era mais rápido. A chuva rubra dissolvia-lhe o couro, maculava-lhe a brancura dos pêlos. Derretia-lhe já os cascos, e queimava-lhe a crina alva. Mas ele era mais veloz, mais forte, mais poderoso que a abominação. O inimigo galopava cada vez mais rápido, mas Bandido encurtava a distância. De um ponto ao longe, o caçador tornou-se uma silhueta distinta. Cresceu na visão, a meio tiro de besta, a metros, Orion preparou a lança.
— Sou Orion Drake!
Fez carga.
— Este é o nome de quem vai matá-lo!
A lança de Orion encontrou as costas de Crânio Negro. Em cheio, com a força de um aríete, cravando-se na armadura preta e arremessando o caçador da sela. O cavalo horrendo estacou, imóvel, como se estivesse morto. Crânio Negro voou ao chão, rolou na imundície ácida, pôs-se de pé num salto, desembainhando as duas espadas.
Como um bicho, como um monstro, Crânio Negro pôs-se a estudar o oponente. Passos lentos, circundando, tronco curvado, em defesa. O combate planejado, meticuloso, duelava com as incertezas, a palavra que ouvira, dentro da sua vontade. O nome.
— Fale-me sobre Vallen.
Bandido dançava no chão ácido, mantendo as vistas no inimigo. Orion de lança em punho, tremendo por sob a chuva.
— É meu filho.
— Errado!
Crânio Negro berrou, e atirou-se com as duas lâminas em riste, contra o cavaleiro. Orion ergueu o escudo, mas foi lento demais. Uma das espadas encontrou seu braço, cortando a armadura como se fosse nada. A outra fez um talho fundo em sua coxa. Crânio Negro acertou o peito de Orion com um joelho poderoso, derrubando-o também ao chão.
— Por que você falou de Vallen? — disse o caçador, voz presa.
— Você não é digno de pronunciar este nome.
Orion sacou a espada, golpeou, e o inimigo bloqueou. Investiu com o escudo à frente, batendo no peito de Crânio Negro, mas não conseguiu tirar-lhe o equilíbrio. Ergueu o escudo de súbito, tentando atingir-lhe o queixo, mas o caçador deu um salto acrobático para trás. Orion começou a correr, mas Crânio Negro arremessou uma de suas espadas. A ponta entrou no estômago do cavaleiro, perfurando a armadura com facilidade. Orion hesitou de dor, e Crânio Negro já estava sobre ele, atacando o braço da espada enquanto arrancava a arma presa. Uma golfada de sangue jorrou do estômago de Orion, e o caçador emendou o movimento numa dança giratória de golpes.
— Eu tenho algo a fazer — disse a voz por trás do elmo. — Deixe-me em paz.
Bandido atacou o caçador, batendo com os cascos de trovão em suas costas. Crânio Negro girou, esquivou-se do segundo ataque. Rolou no chão por um momento, e Bandido desceu uma pata monumental sobre sua coxa. O caçador gritou, a armadura preta amassada. Orion golpeou seu elmo, mal conseguindo manter-se de pé. Crânio Negro bloqueou com as duas espadas cruzadas. Chutou o estômago do cavaleiro, bem sobre o ferimento. Orion andou para trás, contorcendo-se de dor.
Crânio Negro botou-se de pé, arrastando a perna que Bandido pisara. O cavalo atacou de novo. Recebeu um corte longo e fundo no peito, desabrochando uma fonte escarlate que tingiu-lhe o pêlo.
Orion bateu em Crânio Negro com o escudo, estocou com a espada. Num passo de dança, direita e esquerda, Crânio Negro evitou a ponta da arma. Girou o corpo sobre um calcanhar, pôs-se a centímetros de Orion, esquivando-se dos golpes. Ergueu as duas espadas, procurando a garganta do cavaleiro, que jogou-se de costas no chão para sobreviver. Crânio Negro pisou no peito de Orion, atacou com uma espada, esperou o inimigo erguer o escudo, e estocou com a outra. A ponta afiada da arma perfurou escudo, perfurou armadura, trespassou o antebraço. Orion viu o metal pontiagudo surgindo do outro lado. Crânio Negro puxou a espada, o interior das placas e da manopla se inundou de sangue, e o escudo rachou, dividindo-se, inútil.
O caçador de recompensas examinou Bandido, que relinchava agressividade para outro ataque, aliviou o peso do corpo da perna dolorida, saltou para longe dos cascos do cavalo. Orion viu o mundo bêbado ao seu redor, cambaleou de pé, com o braço do escudo amortecido e duro, o interior da armadura vazando vermelho. Em duas partes, o escudo pendia pateticamente, ainda preso pelas tiras de couro.
Bandido atacava de modo inteligente e maligno, direcionando os cascos de marreta para as pernas do inimigo. Crânio Negro sentia a coxa atingida latejar, mas dardejava, e lançou-se com as espadas cruzadas para o cavalo. Buscou uma pata, mas Bandido ergueu-se no último instante, e o caçador cortou-lhe fundo o couro do flanco. O animal urrou um relincho de dor e fúria, enquanto sua carne pendia à mostra.
Atrás, Orion gritou de novo o grito de guerra:
— Vallen!
Arremessou-se de corpo inteiro contra o caçador, usando o braço dormente do escudo para dar-lhe um encontrão.
Crânio Negro perdeu o equilíbrio e caiu.
Bandido, em um pedaço de instante, pisou-lhe a outra coxa, trovejando seu casco na armadura. O caçador berrou, tentou se colocar de pé mas não conseguiu.
Bandido recuou. Orion recuou.
E montou.
Apanhou a lança.
— Minha luta não é com você — disse Crânio Negro.
— Carga — sorriu Orion, entre dentes.
Orion e Bandido fizeram carga contra a armadura. A lança retumbou no peito de Crânio Negro, que se arrastava sobre pernas inúteis, no chão. Cavalo e cavaleiro passaram em galope. Bandido voltou-se, Orion preparou a lança. Investiram de novo. Crânio Negro foi jogado, o golpe poderoso nas costas, fazendo-o girar no ar fétido. Passaram a galope, e o corcel se voltou.
— Eu só quero respostas — disse Crânio Negro. — E paz.
Carga.
A chuva castigava os inimigos. Orion enxergava o vulto negro por entre uma névoa de sangue, ácido e a própria carne derretida. Sentiu um impacto fundo quando as duas espadas do caçador, arremessadas, encontraram seu peito. Vomitando uma trilha de sangue, ainda assim encontrou a força para agarrar a lança firme, e acertar o último golpe.
Trespassado e solto, Crânio Negro foi arremessado metros além. Numa poça de sangue que fervia e se dissolvia, a armadura esburacada.
Bandido chegou perto, cheirou-o.
Morto.
Orion desfaleceu.
Bandido relinchou, e arrastou o cavaleiro para fora da Tormenta.

— A época já passou — disse Darien.
E golpeou a mão estendida de Vincent.
O rosto por trás do elmo insetóide aberto navegou entre surpresa e, por fim, raiva.
— Você não tem lugar aqui — rosnou Vincent.
— É verdade.
Encaravam-se, a luta rugindo por todos os lados.
— Você vai me — disse Vincent, escorregando de novo para a incredulidade.
— Não houve nenhuma traição aqui, Vincent. Porcaria, você nunca fez nada contra mim. Mas já acabou. Merda, sua boneca loura, não vê que já acabou? É uma droga que o Bando do Dente Quebrado tenha morrido todo, e que você tenha virado um monstro maluco, e que eu tenha acabado como um soldadinho comum. Mas não podemos fazer mais nada.
— Fique junto comigo, Darien!
— Cale a boca, seu afeminado. Não se pode voltar atrás.
E pulou, desajeitado, sentindo o corte no flanco, golpeando com a espada.
Vincent fechou seu elmo de um instante, e usou o antebraço para aparar o golpe. A espada de Darien se quebrou na carapaça, e ele caiu no barro. As pernas fraquejaram por causa da ferida, os pés escorregaram. As patas insetóides do cavalo corrompido estavam a meio metro, e a ponta da lança de Vincent a um centímetro.
Vincent apeou de um salto, chiando e estalando as quelíceras.
Curvou-se sobre o corpo de Darien. Com um safanão, impediu que ele se contorcesse. Agarrou seu pescoço com as duas mãos. Darien deu-lhe socos fracos. Tentou se livrar, mas os dedos encouraçados de Vincent eram imóveis. Darien viu pontos luminosos flutuando. Começou a ficar roxo.
— Vincent, seu idiota — arrastou a voz em um longo engasgo.
Os dedos fraquejaram em sua garganta. Vincent estremeceu, sua couraça ondulando, os tentáculos chicoteando. Soltou.
— Vincent, seu idiota — disse Darien, tossindo.
Vincent crispou as mãos. Agitou as antenas. Urrou um guincho ardido, e sua carapaça se abriu toda. Por entre buracos na pele, foi sugada de volta para dentro do corpo. Ele estava vestido em farrapos imundos. Branco e gelado. Balançando a cabeça, os cachos louros compactos e fedorentos, e chorava.
— Vincent, seu idiota. — Darien tateava ao lado.
— Você tem que me ajudar, Darien. Eu não lembro direito… É confuso. Você tem que me ajudar.
— Vincent, seu idiota.
Darien agarrou o cabo da espada quebrada. Enfiou a extremidade partida na garganta do amigo. Vincent gorgolejou sangue.
— Vincent, seu idiota. Você tem que ser fiel a alguma coisa. Não se pode voltar atrás.
Puxou a meia-lâmina, rasgando a garganta de Vincent, cego pelas lágrimas.

— Não há morte — disse Crânio Negro.
E era verdade, porque, mais uma vez, ele vivia.
Arrastou-se, sob a chuva e pelas poças cáusticas, através da área de Tormenta. Deslizou pelos campos de navalhas, nadou nas lagoas de pus. Arrastou-se, sentindo cada vez mais a presença terrível e beatífica dos Lordes reunidos. Seus olhos sangravam, sangravam os ouvidos. A armadura era corroída lentamente, mas ele se arrastava.
Até que viu os cinco Lordes. Seu antigo mestre, Gatzvalith. O guerreiro, humanóide e tentador. Aparência quase artoniana. Seu novo mestre, Aharadak. O deus, um estômago monstruoso com o enorme olho cercado de dentes, e as patas insetóides. Os outros Lordes: Igasehra, o monstro. Como um gigantesco lagarto-inseto, vomitando destruição. Raigheb, composto por lefeu e humanos e coisas, uma massa indistinta, um enxame. Urazyel, que era um castelo, sua área de Tormenta habitando o interior de seu corpo.
— Eu tentei — disse Crânio Negro.
Os Lordes se voltaram para ele.
Súbito, a tempestade entrou em fúria. Os relâmpagos se derramaram aos milhares. Vulcões surgiram, jorrando escória. A terra se contorceu em ondas, um rio ferveu e uma montanha desabou. A planície virou deserto, a floresta virou pântano.
Porque os Lordes gargalhavam.
Você pensou que fazia uma era Aharadak.
Você pensou que fazia um era Gatzvalith.
Crânio Negro sentiu uma cachoeira de gelo subir-lhe pelo esôfago.
— Eu tentei — disse. — Tentei cumprir minha parte. Eu preciso de E
A idéia, o sabor particular de corrupção que era como a voz de Aharadak preencheu o caçador de recompensas:
Nenhum artoniano pode fazer frente aos lefeu. Não há como trair os lefeu. Não há como enganar os lefeu. Não há nada, exceto lefeu.
Horror.
E então, Gatzvalith:
A fagulha de vontade própria que você possuía já se foi. Agora será mesmo um general perfeito.
— O ataque — disse Crânio Negro. — A união das tribos. A guerra. Todos os milhares. Por…
Nada.
Um minúsculo plano dos Lordes da Tormenta. Um estratagema menor, descartável, quase esquecido.
— Somos mesmo…
Insignificantes.
Crânio Negro compreendeu. A vastidão do horror. Pensou em Arton, e em como o mundo era risível, minúsculo, patético.
Você está pronto — era Aharadak.
— Não preciso mais de respostas.
E é por isso que agora pode tê-las.
Os Lordes gargalharam de novo.

Pressionado dos dois lados, o exército da União Púrpura começava a morrer. Cada bárbaro levava consigo dois ou mais soldados, mas sua força diminuía. Os estratagemas dos comandantes, os números de Yuden esmagavam o inimigo, já sem general.
Bandido arrastava Orion para a tenda de comando.
Era um silêncio bizarro, depois do trovejar intermitente e do ruído ensurdecedor da batalha. O cavalo, coberto de feridas e queimaduras, puxando os cascos poderosos e meio destruídos, seguia de cabeça baixa, levando o cavaleiro. A chuva caía mansa, refrescante, longe dos guerreiros.
Tanta quietude que Orion acordou.
Piscou, compreendendo os arredores. Viu o acampamento deserto, sentiu o passo lento da montaria. A sua enorme tenda, onde ondulavam o estandarte do Corvo e o brasão da Ordem da Luz.
Orion se ergueu na sela, com dificuldade, sangrando por lugares sem conta. Afagou a crina de Bandido.
E viu os cadáveres.
Desajeitado, sem força, fez o cavalo andar mais rápido. Mal conseguia agarrar a rédea com a única mão que respondia. Havia um rasgão enorme na lona de sua tenda. A cabeça de um dos cavaleiros designados para guarnecer Vallen Drake recebia chuva, desolada em frente à barraca. Bandido acelerou, Orion tateou pela espada. Os corpos de todos os guardas estavam espalhados, ali, estômagos abertos, braços decepados. Bandido seguiu o mais rápido que pôde, Orion ainda tentava sacar a espada. Havia uma trilha clara de botas metálicas na lama.
Pouco à frente, o Cavaleiro Risonho.
Orion encontrou forças. Puxou a espada da bainha, segurou-a em tremedeira.
O homem, coberto por inteiro com uma armadura reluzente e quase espelhada, que tilintava com os pingos de chuva, sorria com seu elmo grotesco. A forma da cabeça desproporcional, o eterno frenesi congelado, no sorriso largo demais. E, em seus braços, esperneando, um bebê.
— Vallen! — rugiu Orion.
Botou os calcanhares nos flancos de Bandido, ergueu a espada o mais que pôde.
O Cavaleiro Risonho assobiou.
Bandido deu um salto, corcoveou, subiu nas patas traseiras. Orion caiu de costas no chão, sentindo mais algum osso quebrar. Levantou meio tronco, num esforço inumano, e recebeu um coice de aríete.
O Cavaleiro Risonho montou em Bandido, com uma facilidade de dançarino. Vallen Drake ainda chorava em seu colo.
Cavalo e cavaleiro aproximaram-se de Orion. A chuva inundava-lhe os olhos. Ainda tentava se erguer. Seu pai se inclinou para ele.
— Lembre-se — disse o Cavaleiro Risonho. — Tudo que você tem, eu posso tirar.
E galopou para longe.

Vitória.
O campo de batalha era um morticínio horrendo, atapetado de cadáveres. A chuva ainda caía, transbordando de bocas mortas. Os abutres escolhiam seus petiscos, rejeitando os bárbaros e refestelando-se no Exército do Reinado. Mais uma vez, não houvera prisioneiros. Cada inimigo precisara ser morto. E cada inimigo cobrara seu preço. Talvez uma décima parte de todas as tropas ainda vivesse.
Darien cambaleava pelo campo de morte, em passos largos e irregulares. Segurava ainda a espada quebrada, suja do sangue de seu amigo. Ouvia os lamentos de milhares, que ainda chafurdavam naquela vida agonizante. Passava por cima dos cadáveres, e daqueles que eram como cadáveres. Amortecido.
Viu um cavalo morto, com um imenso rasgão no bucho. Por baixo dele, esmagado e de pescoço quebrado, estava Asmien. Vestia uma armadura. Morrera como cavaleiro.
Nobres e soldados espalhavam-se, dando de comer aos carniceiros. Darien discerniu Fredecald e Richard, caídos um perto do outro, aos pedaços. E Timothy, embora sua cabeça estivesse esmagada, e só fosse possível reconhecê-lo pela roupa. Os senhores dos quatro escudeiros. E milhares, milhares.
Uma voz familiar atraiu-lhe os ouvidos. Virou a cabeça, e viu o Doutor Zebediah Nash, um talho imenso dividindo-lhe o peito, murmurando agonias. Ao seu redor, dois namalkahnianos, ainda vivos. Um clérigo de Khalmyr se ajoelhou, aproximando a mão brilhante de santidade.
O Doutor Nash afastou-o com o mais forte safanão que conseguiu produzir.
— Você vai morrer, sem a ajuda dos deuses — disse o clérigo.
O Doutor sorriu, com dentes avermelhados.
— Não existe deus nenhum.
E expirou com um último orgulho.
Darien seguiu, em sua peregrinação semi-adormecida, sem rumo. Às vezes, tinha certeza de ver um rosto conhecido, mas já não sabia. Todos se misturavam, em uma massa de carne e lembranças, iguais na morte.
Os cadáveres ficaram mais raros. Ele se afastava do campo de batalha.
O estandarte do Corvo pendia, ao lado da tenda do general.
Darien parou, espada ainda na mão, por sobre Orion Drake.
O cavaleiro abriu uma nesga de pálpebras vencidas.
— Traição — murmurou.
Darien rilhou os dentes. Segurou a espada partida com as duas mãos, ajoelhou-se sobre Orion. A extremidade quebrada apontando para o rosto do general.
E deu um soluço.
Largou a espada, abraçou sir Orion Drake.
— Acabou tudo… Acabou tudo…